O fanático morreu

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuca - Data: 08/01/2011
O fanático morreu
 
Perdoe minha insistência, Joãozinho, mas tenho a impressão de que causas de acidentes é realmente uma coisa interessante para se falar a respeito.
 
Dia destes, enquanto conversava com um amigo uma luz se acendeu: ele me dizia que depois que se acidentara, teve de se afastar um pouco do esporte e ficou olhando as coisas por um ângulo que não estava muito acostumado. Com isto, novas impressões começaram a aparecer diante de seus olhos. Isso me fez pensa que a gente sabe que mudança de ângulo é uma coisa não é? Se a gente pensar em vídeo, por exemplo, ou até fotografia, uma mudança no ângulo de enquadramento pode dar um efeito mais dramático, mais íntimo, de desligamento, enfim, o mesmo tema pode ser explorado de várias maneiras apenas mudando o ângulo da câmera.
 
Na vida isso acontece do mesmo jeito. Se a gente tem um problema, por exemplo e consegue ser capaz de analisar ele de diferentes ângulos, vai ver que dependendo da maneira como você olha para ele, pode ou não encontrar diferentes soluções, mais ou menos eficientes.
 
Por isto tento me acostumar a procurar sempre olhar as coisas de diferentes ângulos, diferentes pontos de vista se o leitor preferir.
 
Uma coisa bastante interessante que esta prática me proporcionou é perceber que a maioria das pessoas parece estar resumida a olhar tudo por um ângulo só. Sabe aquelas fotos que algumas pessoas munidas de câmera fotográfica tiram? Todo mundo um do lado do outro abraçado e a câmera sempre na altura dos olhos. Essa foto não muda nunca. Perceba que para muitos destes "fotógrafos" não existe outro ângulo. Eles não exploram, por exemplo, colocar as pessoas enfileiradas, ou alguns sentados e outros de pé. Quando muito, conseguem fazer a foto sem cortar os pés ou a cabeça dos alvejados pelos seus cliques.
 
Tem gente por aí, que vive como estes fotógrafos. Olha tudo sempre do mesmo jeito, sempre do mesmo ângulo e para estas pessoas, tudo parece sempre igual, pois elas só têm um jeito de olhar para as coisas.
 
Isso é uma limitação muito séria, pois a "des"-capacidade de olhar para o mundo sob diferentes óticas termina por limitar nosso contato com ele. Limita a percepção de nossas sensações e nossa capacidade de resolver problemas; limita a criatividade e nos deixa muito previsíveis.
 
Sabe que não tem coisa pior que ser previsível, né? Quem está atento sabe como é isso, você já sabe de antemão exatamente o que determinada pessoa vai dizer quando receber determinada notícia, na verdade nem precisa pedir a opinião dela, pois já sabe o que ela vai dizer mesmo... isso não é um quadro triste? Triste mas freqüente.
 
Gente esperta e atenta em busca das respostas desejadas, faz as perguntas do jeito certo, pois já sabe o que o povo vai responder. Isso cheira até a mau negócio...
 
Mas onde quero chegar com essa conversa? Sabe o que é? É que eu vejo que existe uma pressão social para esta previsibilidade. Existe (e sempre existiu) uma espécie de roteiro pré-determinado para as várias esferas do nosso dia a dia. Repare como você se comporta de manhã quando vai trabalhar; acorda, toma café, veste a roupa, pega o elevador e se tiver alguém dentro você faz um comentário qualquer tipo "hoje está frio", fica olhando para baixo, pega o carro, liga o rádio, pára no farol... e assim por diante. Você faz exatamente as mesmas coisas todos os dias do mesmo jeito. Se alguém pára para conversar um pouco, tipo fila de banco, as conversas são exatamente as mesmas, "hoje está frio, não?". Os homens estão mecanicamente vivendo suas vidas. E no vôo acontece exatamente a mesma coisa. Não é porque somos corintianos ou flamenguistas, voamos de asa ou de parapente, gostamos de cerveja ou água sem gás. É porque o vôo é simplesmente um prolongamento social do meio em que vivemos, da casa do "bicho-homem".
 
Perceba que quando a gente começa a voar, tem a impressão que entra num mundo maravilhoso, quase um conto de fadas. Isso é inegável, afinal podemos voar, não é verdade? Isso já nos faz diferentes dos "batráquios rastejantes" (como dizia o pai do Paul) que habitam a terra. Porém sabemos que continuamos sendo Joãozinhos também e que estamos sujeitos a um roteiro pré-estabelecido e isto é inevitável.
 
Assim, um voador na acepção da palavra deve começar a freqüentar a rampa todos os finais de semana, gastar uma nota em equipamentos que nunca irá utilizar totalmente, reúnir-se com pessoas que talvez não goste em restaurantes que talvez deteste para comer e beber coisas que talvez nem esteja acostumado. Deve ficar horas conversando sobre marcas de parapente e horas navegando na Internet pesquisando a respeito de marcas de parapente. Precisa apaixonar-se pelo barranco onde voa como se o próprio Cristo tivesse sentado uma meia horinha pra olhar a paisagem lá de cima em algum dia no passado. Não deve jamais sair de casa sem o parapente na mala e precisa comprar um 4x4 caríssimo para poder carregar o parapente na enorme mala. A família deve adquirir uma importância digamos "diferente", afinal o voador continuará amando sua esposa e filhos, porém a partir de agora, as viagens serão apenas para lugares onde dá vôo. Almoçar fora, de agora em diante, só aonde vão os voadores. Algumas famílias acham ótimo, pois nem se viajava antes naquela casa, outras nem tanto, pois a casa na praia começou a juntar teias de aranha, afinal o voador tinha culpa de não ter morro perto?
 
Já vimos alguns casamentos soçobrarem diante da famosa frase "o parapente ou eu". Tudo bem, talvez tivessem sido casamentos que jamais devessem ter acontecido, é bem possível, mas ou outro lado também é uma possibilidade, não é verdade? Não é só uma questão de ângulo?
 
Creio que mais uma vez o vôo pode nos trazer lições sobre como viver melhor, sobre como aprender a olhar as coisas sob diferentes ângulos.
 
Mudando um pouco o ângulo, por exemplo, podemos perceber que não somos obrigados a voar todo final de semana se realmente não desejarmos. Não somos obrigados a voar na mais turbulenta das térmicas nem voar com parapentes mais nervosos, nem freqüentar aquele restaurante com aquela comida horrível.
 
Não somos obrigados a ter raiva dos voadores da praia nem dos voadores do interior, não somos obrigados a viramos a cara para voadores de asa nem de parapente.
 
Realmente não temos obrigação alguma de voar só em Santa Rita ou só no Pepino ou na Mole ou só em Sapiranga ou nunca sair do Gavião ou de São Vicente. Olha, não somos obrigados a voar onde nossos amigos voam e nem somos realmente obrigados a sermos amigos deles.
 
Não somos obrigados a ficarmos putos quando alguém fura a fila da decolagem, nem somos obrigados a não conversar com os alunos do outro instrutor.
 
Também não somos obrigados a fazer SIV, nem participar do curso do Frank nem sequer pousar no pouso oficial.
 
Não somos obrigados a não nos misturar a não perguntar, a não dizer bobagens. Não somos obrigados a não ter medo, a não chorar e a não desistir dessa decolagem.
 
Não somos mesmo obrigados a comprar, a vender ou a fumar maconha.
 
Não somos obrigados a brigar, a beber ou dar carona.
 
A verdade é que temos não só o direito, mas o dever de exercer nossa identidade seja ela qual for.
 
Talvez você me pergunte o que tudo isto tem a ver com causas de acidentes e eu te direi: Simples questão de ângulo.
 
Silvio Ambrosini - Sivuca
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