O efeito cascata

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuca - Data: 08/01/2011
"O efeito cascata" ou "As conseqüências indesejáveis da migração do eixo pendular".

Vocês se lembram do Joãozinho? Sempre metido em histórias incríveis, não?

Outro dia eu estava chegando perto de uma galera no pouso que formava uma roda. Não era roda de fumo não, sabe quem estava no centro, gesticulando e narrando a sua última aventura? Ele mesmo! Nosso amigo Joãozinho.

Cá entre nós, fico particularmente impressionado com a capacidade de sobrevivência do Joãozinho, este (não aquele), pobre voador de fim de semana já teria sucumbido à maioria dos eventos dos quais Joãozinho passa sempre raspando ileso.

Mas voltando à roda, desta vez ele estava branco como um nabo, dava para ver a euforia dele ao contar que seu parapente tinha adquirido vida, que enquanto enrolava uma térmica, a vela dera um pulo na sua frente e quando ele deu por si, estava numa interminável e apavorante seqüência de pêndulos que perdurou até que por fim, como que pelo toque do Espírito Santo, a vela saiu voando e ele só teve de fazer aproximar e pousar (de bunda, digo, de airbag, afinal ele serve pra isso, né? Ou estou errado?).

Joãozinho contava o que acabara de acontecer de uma forma bastante apaixonada e eu fui me aproximando da roda só para ver se tinha alguma coisa nova para aprender. Eis que surge correndo um outro amigo nosso com uma câmera de vídeo na mão: "eu filmei tudo!" gritava ele, "eu peguei tudo!, vejam!".

A conversa parou na hora e todas atenções se voltaram para a minúscula telinha de cristal líquido que mostrava meio tremido o incrível Joãozinho enrolando uma termal no meio de uma galera. O que vi a seguir, vou procurar descrever para vocês da forma mais detalhada possível.

Joãozinho estava com dificuldade de manter a vela sobre a cabeça e me parece que encaixou no núcleo da termal sem corrigir os batoques (pilotagem ativa). Claro que o parapente pendulou. A vela recuou atrás da cabeça de Joãozinho uns 10 ou 20 graus e deu para ver seu bracinho acionando os freios exatamente neste momento. Joãozinho provocou uma pequena parachutagem devido ao excessivo ângulo de incidência associada ao uso dos freios e a vela parou um pouco de voar. Nesta hora, sem saber como agir, ao invés de liberar os freios, Joãozinho manteve os bracinhos apertando os batoques e a vela recuou ainda mais. Foi quando ele resolver dar uma liberada e a vela avançou violentamente. O que se vê na seqüência é uma cascata pendular, onde temos a impressão de que cada pêndulo ajuda o próximo a ficar ainda mais violento. No último pêndulo, finalmente, a vela sofre um colapso simétrico e abre como por milagre e Joãozinho estava lá novamente pendurado debaixo dela como se nada tivesse acontecido. É claro que se Joãozinho estivesse voando um parapente mais bravo que seu 1-2, possivelmente estes pêndulos tivessem evoluído com mais violência, produzindo um resultado mais desastroso.

Mas o que importa de tudo isto é uma peculiaridade deste tipo de pêndulo que eu gostaria de ressaltar aqui: percebam que normalmente, num pêndulo frontal, temos um eixo que corre no sentido do alongamento do parapente e que se situa em algum lugar muito próximo da vela, migrando delicadamente nalgum ponto entre a região do intradorso e do extradorso; este é o eixo X. Podemos dizer que o piloto se situa na região mais afastada deste eixo e a distância entre piloto e eixo do pêndulo pode ser chamada de raio, como numa roda de bicicleta. Veja a ilustração abaixo.

O piloto, naturalmente descreve uma velocidade radial ao redor deste eixo (daí o nome). Isto acontece porque diante de atraso muito grande do velame, leva mais tempo para atingir velocidade, há um momento de parada até que o velame principie seu movimento para frente. Enquanto isto, a gravidade já está cumprindo seu papel e puxando o piloto para baixo; quando finalmente o velame avança, isto acontece simultaneamente com o recuo do piloto provocando então a migração do eixo pendular.

Sabemos também que a velocidade radial está diretamente relacionada ao tamanho do raio, isto é, num movimento circular (como a evolução do piloto ao redor do eixo), a variação da distância entre piloto e eixo está diretamente relacionada a importantes alterações de velocidade radial.

Assim, se num movimento circular, repentinamente reduzimos o raio pela metade, a velocidade radial imediatamente duplica. Este fenômeno pode ser facilmente constatado fazendo-se uma experiência simples com uma pedrinha amarrada ao final de um pedaço de barbante; girando-se o conjunto e repentinamente colocando-se um dedo ou um lápis na altura da metade do raio, veremos que a pedrinha irá descrever várias voltas a mais por conta do ganho de velocidade. Este é o fundamento de várias manobras aparentemente impossíveis ou difíceis de compreender no parapente, entre elas a manobra SAT e todas as suas derivadas especialmente aquelas onde o piloto passa por cima da vela.

Então, o que podemos perceber aqui é que: diferentemente do que acontece num processo pendular corriqueiro onde o eixo está na vela, naquele momento específico, o eixo migra repentinamente para algum lugar entre a vela e o piloto, fazendo com que a velocidade radial se multiplique.

Esta importante aceleração é uma novidade para Joãozinho que a descreve como se seu parapente tivesse adquirido vida. Afinal, Joãozinho está acostumado com um determinado timming de pêndulo e agora, as coisas estão acontecendo praticamente no dobro da velocidade.

Enquanto em um pêndulo normal, a vela parece mover-se numa velocidade menor que o piloto, nesta nova configuração, vela e piloto movem-se ao redor de um eixo imaginário que habita o centro do conjunto numa velocidade duas vezes maior.

Se voltarmos à manobra SAT, veremos que enquanto a vela se move para frente, o piloto vai para trás, caracterizando uma migração de eixo de rotação. Desta maneira, o aparentemente impossível se torna possível e um piloto torna-se capaz de através de um tumbling ou um SAT assimétrico (não vamos entrar em detalhes aqui sobre as diferenças específicas entre estas duas manobras, quem sabe numa outra oportunidade?) passar duas, três ou mais vezes por cima do velame. De onde veio toda aquela energia? Exatamente da migração do eixo pendular que ao reduzir o raio pela metade, tem a velocidade radial duplicada!! É esta mesma migração a responsável pela "possessão" do velame durante o efeito cascata.

Vamos lá, observe as figuras nº2, elas são seqüenciais em intervalos de tempo de 1 a 10:
 

A figura acima nos mostra um atraso do velame que pode ser causado pelo uso de freios ou entrada em uma ascendente. 

Se isto acontece de forma suave, vamos para a figura 2b onde vemos o avanço da vela de forma suave com o eixo no piloto que tem um momento de "parada". Entretanto, se o atraso for violento demais, como, por exemplo, num momento de estol inadvertido, vamos para a figura 2b’ que nos mostra uma migração do eixo e conseqüente aumento vertiginoso de velocidade

É isso que acontece durante o efeito cascata assim como na situação de estol que acabo de mencionar.

A figura 2c mostra a saída de ambos os movimentos.

Uma pequena dica: uma possível neutralização do pêndulo deve acontecer precisamente no momento 4, (figura 2b) ou no 5 (na figura 2b’), mas nunca antes.

Bem, se o velame está "possuído", está mais que na hora de exorcizá-lo, não é mesmo? Afinal a Linda Blair e o Joãozinho juntos já nos bastam para brincar com este tema.

Vamos então voltar para a causa inicial da meleca toda: a parachutagem induzida involuntária. Se quisermos ser felizes, é essencial que levemos em conta que para estolar um parapente não é sempre necessário acionar os freios até embaixo da selete. Se a posição pendular for favorável (ou desfavorável, como queira), ou seja, vela recuada atrás da cabeça do piloto, o nível de turbulência gerado pela simples inclinação da vela associado a um pouquinho de freio, já será suficiente para provocar um estol. Quem já viu o Curreca provocar um helicóptero entende agora como que o cara parece que sai girando do nada; ele provoca um pequeno pêndulo e aperta um pouco os freios no momento exato em que a vela está mais atrás provocando uma entrada parachutal e em seguida entra no helicóptero (não vou me deter a detalhes desta manobra também).

A questão então é que Joãozinho não se deu conta desta inclinação e caprichou no freio estolando a vela inadvertidamente. É preciso ficar atentos à inclinação e agir no freio de acordo. Em especial, a preocupação excessiva de alguns pilotos em conter avanço pode ser o gatilho para uma intervenção antecipada nos freios quando a vela está recuada e se isto acontece imediatamente antes dela iniciar o retorno, a possibilidade de estol é muito grande mesmo em parapentes para iniciantes. Na verdade, recomendo que se atue nos freios somente a partir do momento que a vela passa exatamente sobre a cabeça do piloto. Cuidado também para não deixar para frear tarde demais, ou seja, quando a vela já foi para frente e inicia o retorno.

Bem, estol à parte, Joãozinho já entrou na cascata. O que fazer? Na maioria dos casos, nada. Isto mesmo, a maioria dos parapentes irá retomar vôo espontaneamente sem intervenção do piloto, quando não o faz especialmente neste caso. Esqueça recomendações de formuletas in-falíveis como "posição mágica", "mão-na-orelha" e outras. Isto só tende a complicar ainda mais as coisas, pois o parapente precisa de velocidade para retomar vôo.

Pilotos mais experientes especialmente aqueles que tenham tido instrução adequada durante um curso S.I.V. ministrado por um instrutor que tenha comprovada experiência com este tipo de situação poderão optar pela aplicação do full stall. Isto é especialmente prudente se o piloto voa com equipamentos de maior rendimento como os atuais DHV 2 e 2-3 ou coisa pior, já que a reação destes parapentes durante uma cascata pode facilmente conduzir o piloto a uma situação bem mais grave como até um possível mergulho dentro do velame, ou no mínimo um colapso seguido de gravata e posterior entrada em auto-rotação.

Creio eu que a maioria dos pilotos que voa equipamentos mais bravinhos sabe fazer um full stall corretamente, não é verdade? Então, este procedimento pode dar cabo do problema se for corretamente aplicado; ressalto o SE, pois se não for assim, a situação poderá ficar ainda mais complicada.

Tenho insistido muito para o Joãozinho fazer um SIV, mas ele é muito resistente ao mesmo tempo em que está muito sujeito aos conselhos algumas vezes infundados da galera. Essas coisas são difíceis, espero que agora depois deste susto ele acorde para uma realidade tão dura quanto o chão abaixo de nós.

 

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