Voando Duplo

Fonte: Silvio Ambrosini - Sivuca - Data: 08/01/2011
 
O piloto que voa duplo tem a responsabilidade bem multiplicada, já que não há nada que o passageiro possa fazer para evitar algum acidente caso o piloto cometa um erro muito grave.
 
A primeira coisa a se considerar é a habilitação, ou seja, não se deve em hipótese alguma, voar um parapente duplo se o piloto não estiver devidamente habilitado. Entende-se aqui habilitado como sendo alguém que fez um curso e aprendeu as técnicas necessárias para executar este tipo de vôo com segurança e não apenas leu esta ou aquela literatura e tirou sua carteirinha[1].
 
Assim, o novo piloto de vôo duplo deverá antes de qualquer coisa procurar um instrutor habilitado que o oriente devidamente. Mas não é apenas um instrutor habilitado que ele deve procurar, quando se procura um instrutor, procura-se também um modelo de comportamento geral, comportamento este que procurarei especificar um pouco mais adiante.
 
O equipamento
 
O parapente de duplo precisa de um pára-quedas específico para este fim, já que o peso total do conjunto pode chegar a mais de duzentos quilos. Ele deve obrigatoriamente estar conectado a um bridle [2] que por sua vez, conecta-se ao mosquetão principal. Se o equipamento não estiver configurado desta maneira, caso se faça uso do pára-quedas, o piloto irá fatalmente cair sobre o passageiro, uma vez que este estará muito mais abaixo dele em virtude da configuração de ancoragem do pára-quedas em uma selete para vôo solo. Com o reserva corretamente conectado ao mosquetão principal, ambos descem na mesma posição de vôo. Aqui o detalhe muito importante é que uma vez aberto o pára-quedas de emergência, mesmo sendo este adequado para vôo duplo, a taxa média de descida é sempre superior àquela encontrada em vôo solo, tornando a chegada ao chão, uma violenta experiência de desaceleração repentina.
 
 
O parêntesis fica por conta daqueles pilotos que utilizam pára-quedas solo no vôo duplo. Uma vez aberto este produzirá uma taxa de queda altíssima que garantirá no mínimo, fraturas nos pés e pernas.
 
Além isso, o mais importante inclusive, é que diferente do vôo solo que automaticamente coloca o piloto na posição em pé, no duplo, em virtude do sistema de ancoragem, a posição continua a mesma do vôo, ou seja, é imperativo que ambos: passageiro e piloto desloquem-se para frente a fim de chegar ao chão de pé, caso contrário irão fazê-lo sentados o que será um violento golpe para a coluna vertebral, bacia e outros ossos e órgãos.
 
Recomenda-se o uso de selete própria para vôo duplo, pois elas são mais confortáveis permitindo mais mobilidade ao piloto. Lembre-se que o passageiro irá pressionar suas pernas para fora, apertando-as contra as tiras laterais da selete e se você estiver utilizando uma selete normal, esta pressão poderá se tornar insuportável especialmente em um vôo mais longo. O passageiro pode usar sua selete normal, entretanto, uma selete um pouco mais simples ocupa menos espaço, facilitando a vida do piloto, principalmente nos momentos de decolagem e pouso quando o piloto precisa mudar de posição. De qualquer forma, o ideal é que a selete do passageiro esteja equipada com airbag ou outro sistema igualmente eficiente de amortecimento, já que o leigo tende a sentar podendo ferir-se no pouso.
 
A prática
 
O briefing
 
É importante considerar que um briefing bem feito é uma boa ajuda para evitar problemas em um vôo duplo. É uma boa coisa que o passageiro saiba de antemão alguns detalhes sobre o que vai e pode acontecer, bem como todos os procedimentos a serem adotados.
 
Embora pareça uma coisa simples o ato de ser passageiro em um vôo duplo, a ausência de informação pode levar o passageiro no mínimo a passar mal, chegando a ponto de atrapalhar seriamente a segurança do vôo duplo.
 
Entretanto, o briefing precisa ser resumido ao estritamente necessário, uma vez que tenho observado que o excesso de informações tende a gerar um fator de estress no passageiro que passa a se sentir responsável pelo êxito do vôo.
 
Assim, informações demais, especialmente aquelas de caráter técnico como colapsos, por exemplo, podem ser suprimidas. É importante que o passageiro esteja confiante na habilidade do piloto e saiba que há muito pouco que ele possa fazer que venha a comprometer a segurança do vôo.
 
Após vários anos de experiência e também em conversa com alguns amigos do vôo, o comentário do piloto e instrutor Rui Marra sobre suas conclusões sobre o assunto me ajudou a concluir que algumas pessoas são levadas a manifestar sintomas de apavoramento extremo se são colocadas em contato com sensações similares a quando eram crianças, especialmente aquelas que sofreram algum tipo de trauma de infância. Ao mesmo tempo outras pessoas irão se apavorar se sentirem que são inteiramente responsáveis pelo êxito do vôo e conseqüentemente pela sua segurança. Então, creio que se o piloto descrever o vôo como um trabalho em equipe onde cada um tem sua tarefa, sem aumentar demais a responsabilidade do passageiro ou sem suprimi-la totalmente como se ele fosse uma criancinha, correm-se menos riscos de ter problemas.
 
A verdade é que a responsabilidade sobre os atos de fatos do vôo duplo são exclusivamente suas como piloto. Detenha-se ao essencial, descreva a decolagem passo a passo explicando que você irá inflar o parapente que deverá ficar sobre suas cabeças e que ele sentirá uma tração na selete. Explique sobre o momento da corrida e como proceder para se ajustar a selete.
 
Evite submeter o passageiro ao desconforto de obrigá-lo a decolar com as mãos já na selete para ajudar a sentar. Embora uma quantidade grande de pilotos adote este procedimento, ele não é absolutamente necessário uma vez que no momento da decolagem, o passageiro tende a ferir os braços nas barras quando estas se movimentam para inflar o parapente. Você como piloto pode tranqüilamente ajudá-lo com isto logo após a decolagem. Naturalmente uma boa idéia é você mostrar para como “vestir” os braços por baixo da barra após decolar.
 
Se você perceber que ele tem dificuldade em sentar na selete, utilize os pés, apoiando-os embaixo da selete dele e empurrando-o para frente. Seu passageiro irá escorregar para dentro da selete com muita facilidade sem passar pelo desconforto descrito acima.
 
Não se esqueça de que o seu passageiro é um potencial novo piloto. Se ele sentir firmeza na brincadeira, poderá facilmente se apaixonar pelo esporte.
 
Em vôo: Esteja atento ao estado de espírito de seu passageiro. Muitos corajosos se descobrem apavorados quando o chão começa a se distanciar. Fale pausada e tranqüilamente orientando o passageiro para relaxar a musculatura mostrando para ele que tudo está tranqüilo e sob controle.
 
Conversar com o passageiro durante o vôo é uma prática muito saudável, já que ele sente que está participando de suas decisões e não está perdendo nada daquilo que está acontecendo. Fale para ele sobre o movimento do ar, as ascendentes, os urubus, enfim; entretenha seu passageiro. Mas não fale o tempo todo! Deixe um espaço para a pura contemplação, chamando sua atenção para a natureza que o rodeia.
 
O Pouso: Procure instruir o passageiro quanto ao pouso um pouco antes de iniciar a aproximação, informando-o sobre o que você pretende fazer e como ele deverá proceder.
 
Dicas úteis:
 
Assumindo-se a posição - passageiro e piloto lado a lado, tanto na decolagem quanto no pouso, estas operações ficam mais fáceis, pois facilita a movimentação do piloto evitando que você tropece no passageiro, especialmente quando este diminui a velocidade ou resolve estancar no chão.
 
Antes de pousar basta empurrar o passageiro para o lado e passar uma das pernas por trás da selete. Certamente as chances de efetuar um pouso seguro aumentarão sensivelmente assim.
 
E falando em pouso, é bastante conveniente que o piloto desenvolva o pouso em pêndulo, a fim de reduzir a velocidade no momento de tocar o solo. Isto se faz freando o parapente e liberando em seguida para provocar um suave mergulho. O efeito pendular facilita o estol que pode ser feito com mais segurança, principalmente se o vento for fraco. Naturalmente não é voando duplo que você irá treinar isto, e sim em vôo solo, já que se não der certo, teremos apenas uma e não duas pessoas hospitalizadas.
 
Lembre-se de que o duplo tem uma área bem maior que um parapente solo, voa mais rápido e conseqüentemente tem muito mais inércia. As evoluções levam mais tempo e fazer uma curva pode tomar um espaço bem maior que o esperado. As manobras no duplo devem ser calculadas com mais antecedência para que aconteçam com segurança.
 
Leve em conta que o parapente duplo tem uma velocidade-cruzeiro consideravelmente superior que a do solo, deslocando-se às vezes a mais de quarenta quilômetros por hora. Este fator, associado à inércia e conseqüente lentidão nas manobras, torna o vôo duplo bem delicado exigindo atenção e antecipação por parte do piloto. A chegada ao pouso pode ser especialmente surpreendente, principalmente se o seu passageiro contar com alguns quilos a mais. Muita calma nesta hora, capriche no pêndulo e proporcione um pouso macio!
 
Manobras
 
Esteja especialmente atento ao fazer manobras. O parapente duplo, por suas dimensões produz uma aceleração centrífuga bastante alta quando se faz uma espiral positiva. Lembre-se que quanto maior a distância entre piloto (e passageiro) e o parapente, maior será o efeito dinâmico de uma espiral. Sendo assim, evite proceder a este tipo de manobra, sob pena de ter de administrar um passageiro desmaiado.
 
O fechamento de orelhas pode ser praticado sem problemas, desde que se alcance as linhas a fim de promover a manobra. Já o B-estol é normalmente bem pesado e requer bastante força física. Ao mesmo tempo, trata-se de uma técnica de descida bastante saudável já que praticamente não submete o passageiro a sustos. Naturalmente tais técnicas de descida somente devem ser usadas em situações onde elas se tornem imperativas. Evite sempre manobras com o parapente duplo.
 
A maioria das pessoas gosta de saber exatamente o que está acontecendo. Explique ao seu passageiro o que está fazendo vocês subirem a 4 m/s ou como é possível voar um tempão sem perder altura somente ficando perto de uma montanha. Eventualmente você poderá mostrar como funcionam os comandos e o movimento do corpo, criando assim, mais motivos para que seu passageiro recomende o vôo duplo a outras pessoas.
 
Lembre-se que apesar de você ser uma pessoa experiente, seu passageiro provavelmente está passando por isto pela primeira vez na vida. Tudo pode ser fascinante, aterrorizante ou simplesmente passar despercebido. Depende bastante de você.
 
Evite transmitir seu eventual nervosismo ao passageiro. Mesmo que a situação for complicada, procure transmitir calma. Não há motivo para que seu passageiro participe de cada gota de suor frio que lhe desça da testa. Uma vez um amigo percebeu que estava tendo dificuldade de descer por conta de uma massa de ar frio que havia penetrado no fundo do vale onde voava (que ele deveria ter percebido antes, pois este tipo de fenômeno só pega piloto distraído). Procedeu a um estol de B contando para o passageiro que estavam brincando de elevador. O passageiro chegou ao pouso feliz da vida e nem ficou sabendo da realidade da situação.
 
Lembre-se: vôo duplo é responsabilidade. Você é o único responsável pela segurança e pelo conforto de seu passageiro. Se você fizer tudo direito, ele vai querer voar novamente e irá recomendar esta atividade maravilhosa aos amigos e parentes.
 
Um caso de vôo duplo
 
Em silêncio nos entendemos
 
Estive durante minhas férias no Rio de Janeiro onde fiz vários vôos duplos. Voar duplo realmente é uma coisa muito especial, pois resgata sensações que algumas vezes havíamos deixado para trás por puro costume de voar, o que é uma pena. Aliás, isto me faz lembrar que muitas vezes fazemos tantas coisas na vida por pura inércia, por puro costume. Coisas banais como ir de carro até o trabalho ou tomar o café da manhã. Mesmo as coisas mais simples precisam de nossa presença, afinal estamos vivos e a vida nos chama para vivê-la. O vôo duplo é uma forma de exercitar isto, de valorizar cada momento, por mais banal que ele possa parecer, já que nenhum momento é realmente banal se você está presente nele.
 
Para quem voa, o sonho de voar é uma realidade tão palpável quanto tomar café da manhã e por conta disto, corre o risco de se tornar algo banal, o que seria uma coisa lamentável. Não permita que isto aconteça, voador.
 
Ora, existe este rapaz, que guarda carros na praia do Pepino. O menino deve ter uns treze anos de idade e sempre se aproximava de mim quando eu fazia acrobacias dizendo da maneira dele que queria voar comigo um dia. Quando gesticulava mostrando seu desejo de voar, procurava sempre fazer um gesto com as mãos que representavam o piloto fazendo uma espiral, como que rodando os dedos indicadores ao redor de um eixo imaginário. Claro! Ele queria voar e queria que eu fizesse uma espiral. “Mas que menino radical” pensava eu.
 
O tempo passou e chegou a oportunidade que ele queria. Eu estava disponível para o vôo, encontrei o rapaz na praia e o convidei para fazer o vôo. Este que topou imediatamente gesticulando a tal espiral sem parar na minha frente.
 
Era uma coisa olhar como o rapazinho estava entusiasmado. Ele praticamente suava frio enquanto subíamos a rampa.
 
Nos preparamos para a decolagem e de um instante para outro estávamos suspensos no espaço. O menino na minha frente estava extasiado. Agarrou os tirantes com toda força do mundo e virou a cabeça para trás para me mostrar o primeiro pensamento que viera a sua cabeça: fez o sinal da espiral rodando o indicador seguido de um sinal de negativa muito claro... não a espiral negativa, a negativa mesmo, aquela do NÃO. Entendi tudo, nada de espiral.
 
No chão, ele me abraçou longamente e eu entendi que aquele havia sido o vôo da vida dele... e sem espiral, afinal, quem precisa dela?
 
Silvio Carlos Ambrosini – Sivuca – www.ventomania.com.br
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